Formatação de Roteiros Para

Histórias em Quadrinhos

Por Sandro Massarani Ao iniciar a escrita de uma história em quadrinhos (hqs), o principal é termos a noção de que, ao contrário do cinema, não existe um modelo único ou preferencial de formatação do roteiro para as hqs, cabendo o estilo e o tipo de escrita à escolhas pessoais ou empresariais. Como diz Denny O'Neil em seu clássico livro DC Comics Guide to Writing Comics, "a formatação certa é aquela que funciona para você". Logo, não há uma certa rigidez em tipos de fontes, tamanhos de letras, margens de folhas, etc. Para facilitar nosso aprendizado, resolvi agrupar as inúmeras formatações existentes em quatro grupos, com as devidas considerações, e sempre lembrando que não há rigidez nessa classificação. Não esqueçam de conferir a bibliografia recomendada e comprar todos os livros possíveis sobre o assunto. Um roteirista de quadrinhos utiliza muito a linguagem do cinema em relação aos tipos de tomada e à distância da câmera, e você pode aprender o básico nesse meu texto. Os quatro grupos mais comuns de formatação de roteiro para as histórias em quadrinhos, de acordo com meus conhecimentos, são: 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel Way (o Modo Marvel) 2. Full Script (Script Completo) 3. Full Script Detailed (Script Completo Detalhado) 4. Layout Script (Rascunho) 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel Way No início da década de 60, os super-heróis da DC retomaram as boas vendas dos períodos anteriores, principalmente por causa da revista Liga da Justiça. O chefão da Marvel Martin Goodman, ciente do fato após uma partida de golfe (!), pediu para que seu editor Stan Lee criasse então um novo grupo de super-heróis. Stan já estava saturado com os quadrinhos da época, revoltado com a mesmice que imperava e queria pedir demissão. Sua esposa então lhe deu o maior conselho de sua vida: escreva a revista do jeito que quiser, já que você vai pedir mesmo a demissão. E Stan, junto com o desenhista Jack Kirby, fez o que lhe havia sido aconselhado. Nascia o Quarteto Fantástico. Com o sucesso da revista, que mostrava pela primeira vez de forma sólida super-heróis com problemas cotidianos, Stan, sempre junto de desenhistas geniais, iniciou uma sequência criativa raras vezes igualadas na arte. Homem-Aranha, o Incrível Hulk, os Vingadores, Homem de Ferro, X-Men, Surfista Prateado e toda uma nova mitologia foi sendo construída. Na medida que o número de revistas aumentava, Stan ficava cada vez mais sobrecarregado, acabando construindo o famoso Modo Marvel de se fazer quadrinhos para solucionar seu problema de tempo. Em poucas folhas, ou até linhas de papel, Stan Lee primeiro resumia toda a história, às vezes separando por páginas, e a entregava ao desenhista. O desenhista construía os painéis e as páginas e as devolvia para Stan, que então finalmente acrescentava os diálogos de acordo com o que o desenhista tivesse feito. Esse método é muito pouco utilizado hoje e deu muito certo na Marvel da época por uma simples razão: Stan Lee só trabalhou com gênios da narrativa. Jack Kirby (que praticamente inventou o desenho moderno de super-heróis), John Buscema, Steve Ditko (Homem-Aranha), Bill Everett (Demolidor), Gil Kane, John Romita, Don Heck (Homem de Ferro), etc. As vantagens desse método para o escritor é a de que ele tem de certa forma seu trabalho reduzido (não sei se é bem uma vantagem), e também pode alterar a história para melhor após ver os desenhos feitos. Se contar com um grande desenhista tirará a sorte grande. As desvantagens desse método são preocupantes. Se o desenhista não souber criar muito bem a história ou não houver uma comunicação frutífera entre os autores, os desenhos podem não ter nada a ver com a idéia que o escritor tinha em mente. Aí ele terá que se virar na hora de colocar os diálogos. Além disso, é um processo mais demorado, onde temos um ping-pong além do normal entre roteirista e desenhista. 2. Full Script (Script Completo) É o tipo de roteiro mais comum, e geralmente o mais parecido com a formatação do cinema. Aqui, as variações na formatação são praticamente infinitas, mas as páginas são claramente definidas, assim como todos os painéis e diálogos. A vantagem é que o roteirista tem um controle maior do que escreveu, e após a aprovação do editor, o trabalho fica exclusivamente nas mãos do desenhista. É lógico que o desenhista pode entrar em contato e fornecer algumas idéias, o que é bastante comum. No roteiro de cinema, não fica muito bem o escritor dar ordens diretas ao diretor em um roteiro. Porém, o roteiro de histórias em quadrinhos é muito mais informal e muitos são realmente uma conversa direta com o desenhista, estando o escritor bem mais a vontade para direcionar a obra do que nos filmes. O nível de detalhe de um Full Script varia muito. O escritor pode apenas dar uma idéia do que ele quer em um painel, dando mais liberdade ao desenhista (principalmente se for de confiança), assim como pode controlar até a composição dos painéis e desenhos de cada página. Exemplos de Full Script: Exemplo - INHUMANS #1 PAUL JENKINS - PÁGINA 8 Para dar o download de todo o script original em inglês clique aqui. Página Oito Painel 1 Certo, rapaz ... esta página é um flashback de eventos que ocorreram quando Raio Negro era um jovem de cara limpa de dezenove anos. É uma reprise de uma história mais antiga, então provavelmente logo que você pegar este roteiro, alguém pode já ter procurado a referência. **Nota: Joe, Nancy... esta é a recordação que vocês pediram. Já que não conseguimos encontrar a referência para esta parte, isso precisa chegar ao Bob por causa da continuidade, e anexado se necessário. Na medida que começamos, estamos no meio de algum conflito ou outro. Maximus está em cima de uma construção, com jeito de insano, gesticulando selvagemente na medida que uma nave Kree decola para o céu. O próprio Raio Negro está acorrentado, e não pode se libertar. Max (Caption): "Não foi minha culpa-eu não pedi para que você estivesse lá quando os Krees chegassem. Você e essa sua consciência intratável e imutável." Painel 2 Aproximamos de Raio Negro, que grita para a nave. Estamos olhando para ele enquanto ele manda um golpe sônico para o ar. Atrás, Max segura a sua cabeça em sinal de extrema dor. Max (Caption): "Você simplesmente não poderia me deixar fora de sua pequena festinha, poderia? Voicê tinha que dizer algo..." Painel 3 Wham! A nave Kree se despedaça no céu, pegando fogo na medida que começa a se desintegrar. O casco principal da nave já aparenta estar caindo de uma forma suspeita lembrando um foguete espacial. Eu lhe dou total permissão para você desenhar o efeito sonoro, principalmente se você colocar uma palavra rude nele. "Tha-WANK!" (?) *** O exemplo acima (traduzi apenas três dos cinco painéis da página) mostra como o roteiro de quadrinhos é bem informal. Há inclusive recados para outras pessoas responsáveis pela revista. Caption siginifica caixas de texto, não sendo balões de diálogos, e são muito comumente utilizadas, geralmente para descrições ou para a narração de uma história, como foi no caso anterior. Exemplo - ULTIMATE FANTASTIC FOUR #21 MARK MILLAR - PÁGINAS 2 e 3 Para dar o download de todo o script original em inglês clique aqui. Página Dois 1/ Ao virar a página o leitor se depara com uma página splash inteira do Coisa de costas para nós, com um punho para trás em nossa direção enquanto ele ajusta um fone de ouvido com o outro. Um Tiranossauro Rex corre contra nós atravessando uma vegetação pré-histórica. Estamos milhões de anos no passado. CAPTION : 150 Milhões de anos atrás O COISA : Reed. O COISA : Dois segundos. Página Três 1/ Uma tomada "cool" do Coisa socando o dinossauro na face. O COISA : HNNT. 2/ Uma tomada impactante com a cabeça do bicho se movendo para trás, com seu maxilar deslocado. SEM DIÁLOGO 3/ Se afaste um pouco e nos mostre o dinossauro caindo em um amontoado, com terra para todos os lados e O Coisa apenas parado lá com uma postura maneira como uma pequena figura. Este painel provavelmente fica melhor visto de cima. SEM DIÁLOGO *** Reparem em como as caixas de texto e o diálogo são colocados na página, não se esquecendo que cada um faz isso de uma maneira diferente. Quando o mesmo personagem fala duas vezes seguidas, significa que o roteirista quer dois balões de diálogo e não apenas um. É interessante notarmos também como o Millar indica o painel apenas com um número, sendo este roteiro de escrita bem ágil. Geralmente, os Full Scripts tem como base a seguinte estrutura: Ou seja, toda obra tem uma ou mais páginas. Cada página tem um ou mais painéis, onde cada painel obrigatoriamente tem que ter uma descrição, e, opcionalmente, Captions e/ou diálogos. 3. Full Script Detailed (Script Completo Detalhado) Criei esse tipo de classificação exclusivamente para abrigar os scripts de Alan Moore, que são detalhados ao extremo. Moore é talvez o mais talentoso escritor de histórias em quadrinhos em todos os tempos, tendo ajudado muito a elevar o prestígio desta arte. Na mesma proporção que Moore é fabuloso ele também é excêntrico, e alguns de seus roteiros para histórias em torno de 20 páginas chegam a ter mais de 100 folhas! O mais interessante, é que mesmo com toda a sua descrição detalhista, os desenhistas que trabalham com Moore sempre deram uma grande contribuição ao seu trabalho, inclusive com idéias próprias. Basta vermos o papel fundamental de Dave Gibbons na criação de todo o simbolismo de Watchmen, provavelmente a maior obra de hq já realizada. Exemplo de Full Script Detalhado: Exemplo - THE KILLING JOKE (A Piada Mortal) ALAN MOORE - PÁGINA 4 - Painel 1 Para dar o download das 10 primeiras páginas dessa obra revolucionária, que estabeleceu as bases da personalidade atual do Coringa, utilizada inclusive nos cinemas, clique aqui. PÁGINA 4. (PAINEL) 1. AGORA MAIS UMA PÁGINA COM NOVE PAINÉIS. NESSE PRIMEIRO ESTAMOS OLHANDO ATRAVÉS DA MESA PARA O CORINGA (SITUADO FORA DO PAINEL) NA MEDIDA QUE ELE FITA OS OLHOS NO BATMAN, QUE AGORA ESTÁ SENTADO NO LADO OPOSTO DA MESA, COM SUAS LUVAS NEGRAS COM BARBATANAS REPOUSADAS CALMAMENTE NA PARTE DE CIMA. ALÉM DISSO, NÓS SÓ PODEMOS VER APENAS UM RELANCE DO SEU PEITO, TALVEZ COM SUA CAPA PRETA PENDURADA DE FORMA A REVELAR APENAS UM POUCO DO AMARELO E PRETO DO SÍMBOLO POR TRÁS. TIRANDO ISSO, O RESTANTE DO BATMAN ESTÁ TOTALMENTE INVISÍVEL NAS SOMBRAS FEITAS PELA AURÉOLA DE LUZ DE UM ABAJUR MONTADO EM CIMA DA MESA DE CARTAS. TALVEZ NAS PROFUNDAS SOMBRAS QUE OBSCURAM A CABEÇA E OS OMBROS DO BATMAN POSSAMOS VER DOIS LAMPEJOS BRANCOS ONDE SEUS OLHOS ESTÃO SITUADOS, JÁ QUE A LUZ DA LÂMPADA DA PAREDE AO REFRATAR NO ESPELHO DE SUAS LENTES DE CONTATO FAZ SEUS OLHOS PARECEREM VAZIOS E BRANCOS TODO O TEMPO. NO PRIMEIRO PLANO TUDO QUE PODEMOS VEZ DO CORINGA SÃO SUAS MÃOS BRANCAS ENTRANDO NO PAINEL PELA FRENTE, PEGANDO OUTRA CARTA E COLOCANDO-A NA MESA DA MESMA FORMA QUE ANTES, AINDA PARECENDO TOTALMENTE ALHEIO A IMPONENTE PRESENÇA DE UMA GRANDE FIGURA NEGRA SENTADA À SUA FRENTE NA MESA DE CARTAS. TAMBÉM VISÍVEL NA MESA, E EU PROVAVELMENTE DEVERIA TER MENCIONADO ISSO NAS PÁGINAS DOIS E TRÊS, PELO QUE EU ME DESCULPO AGORA, SÃO DUAS CARTAS DE CORINGA DESCARTADAS QUE O PÁLIDO LUNÁTICO ESTÁ UTILIZANDO EM SEU JOGO, COLOCANDO UMA POR CIMA DA OUTRA. O BRANQUELO E MALICIOSO DESENHO DA CARTA PODE SER TALVEZ MODELADO À PARTIR DO DESIGN DA CARTA ORIGINAL QUE DEU A IDÉIA PARA JERRY ROBBINS FAZER O CORINGA, O QUE EU ACREDITO QUE POSSA SER ENCONTRADO NO LIVRO DE STERANKO SOBRE QUADRINHOS. A FACE É MALDOSA E PERVERTIDA E DEPRAVADA. O BATMAN: Olá. O BATMAN: Eu vim para conversar. *** Esse script é o exemplo da falta de formatação existente para as hqs. Moore escreve tudo com letras maiúsculas e nem se preocupa em dividir em parágrafos. Reparem a quantidade de linhas para descrever apenas um painel. Só recomendo escrever assim se você tiver a genialidade de Alan Moore, caso contrário faça um roteiro "clean", fácil de se ler, e sem tantos micro detalhes. 4. Layout Script Algumas vezes o roteiro de uma hq, tanto Full Script quanto Marvel Way, vem acompanhado de rascunhos feitos pelo escritor de como deve ser um painel ou uma página, principalmente quando o roteirista quer ter mesmo a certeza de que o desenho final estará bem próximo do que ele deseja. Porém, há uma variante mais incomum que é o próprio roteiro ser todo desenhado em layouts, inclusive com diálogos inclusos, simulando já uma revista pronta e portanto merecendo uma classificação especial. Esses roteiros desenhados geralmente são feitos por excelentes desenhistas que também gostam de escrever histórias, necessitando de um grande conhecimento em narrativa visual. No exemplo abaixo, Jeff Smith (criador de Bone), faz um roteiro desenhado para o grande Charles Vess se basear. Coloquei também a página pronta para podermos comparar. É realmente algo bem interessante. Exemplo de Layout Script: Exemplo - ROSE JEFF SMITH - PÁGINA 21 Agora a versão final desenhada e colorida por Charles Vess: *** Conclusão: É fundamental termos em mente que o básico para uma criação de roteiro para histórias em quadrinhos é o mesmo de uma obra cinematográfica ou literária. Não há mudança significativa na teoria sobre estrutura da história, criação de personagens, diálogos e outros tópicos relevantes. O principal conselho que podemos retirar desse caos de formatação nas hqs, é sempre procurarmos escrever de maneira clara, com bastantes espaços em branco para facilitar a leitura (Alan Moore não conta). Poucos scripts de quadrinhos se encontram disponíveis, até para a compra. Mas nesse caso, na minha opinião, o conhecimento teórico de escrita e a análise das obras já prontas se torna mais importante que a formatação a ser utilizada ou da própria análise de um script original. Exercício proposto: - Pegue qualquer revista em quadrinhos e faça o processo criativo inverso. À partir da revista já pronta, escreva o roteiro, copiando todos os diálogos mas descrevendo os painéis e páginas à sua maneira. O seu poder de sintetizar e observar as informações de uma hq será bastante estimulado, e essa é uma excelente maneira de analisar uma obra. Bons estudos!
tópicos sobre narrativa, roteiros e mundos virtuais
Além do Cotidiano
Além do Cotidiano
tópicos sobre narrativa, roteiros e mundos virtuais

Formatação de Roteiros Para

Histórias em Quadrinhos

Por Sandro Massarani Ao iniciar a escrita de uma história em quadrinhos (hqs), o principal é termos a noção de que, ao contrário do cinema, não existe um modelo único ou preferencial de formatação do roteiro para as hqs, cabendo o estilo e o tipo de escrita à escolhas pessoais ou empresariais. Como diz Denny O'Neil em seu clássico livro DC Comics Guide to Writing Comics, "a formatação certa é aquela que funciona para você". Logo, não há uma certa rigidez em tipos de fontes, tamanhos de letras, margens de folhas, etc. Para facilitar nosso aprendizado, resolvi agrupar as inúmeras formatações existentes em quatro grupos, com as devidas considerações, e sempre lembrando que não há rigidez nessa classificação. Não esqueçam de conferir a bibliografia recomendada e comprar todos os livros possíveis sobre o assunto. Um roteirista de quadrinhos utiliza muito a linguagem do cinema em relação aos tipos de tomada e à distância da câmera, e você pode aprender o básico nesse meu texto. Os quatro grupos mais comuns de formatação de roteiro para as histórias em quadrinhos, de acordo com meus conhecimentos, são: 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel Way (o Modo Marvel) 2. Full Script (Script Completo) 3. Full Script Detailed (Script Completo Detalhado) 4. Layout Script (Rascunho) 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel Way No início da década de 60, os super-heróis da DC retomaram as boas vendas dos períodos anteriores, principalmente por causa da revista Liga da Justiça. O chefão da Marvel Martin Goodman, ciente do fato após uma partida de golfe (!), pediu para que seu editor Stan Lee criasse então um novo grupo de super- heróis. Stan já estava saturado com os quadrinhos da época, revoltado com a mesmice que imperava e queria pedir demissão. Sua esposa então lhe deu o maior conselho de sua vida: escreva a revista do jeito que quiser, já que você vai pedir mesmo a demissão. E Stan, junto com o desenhista Jack Kirby, fez o que lhe havia sido aconselhado. Nascia o Quarteto Fantástico. Com o sucesso da revista, que mostrava pela primeira vez de forma sólida super-heróis com problemas cotidianos, Stan, sempre junto de desenhistas geniais, iniciou uma sequência criativa raras vezes igualadas na arte. Homem-Aranha, o Incrível Hulk, os Vingadores, Homem de Ferro, X-Men, Surfista Prateado e toda uma nova mitologia foi sendo construída. Na medida que o número de revistas aumentava, Stan ficava cada vez mais sobrecarregado, acabando construindo o famoso Modo Marvel de se fazer quadrinhos para solucionar seu problema de tempo. Em poucas folhas, ou até linhas de papel, Stan Lee primeiro resumia toda a história, às vezes separando por páginas, e a entregava ao desenhista. O desenhista construía os painéis e as páginas e as devolvia para Stan, que então finalmente acrescentava os diálogos de acordo com o que o desenhista tivesse feito. Esse método é muito pouco utilizado hoje e deu muito certo na Marvel da época por uma simples razão: Stan Lee só trabalhou com gênios da narrativa. Jack Kirby (que praticamente inventou o desenho moderno de super-heróis), John Buscema, Steve Ditko (Homem- Aranha), Bill Everett (Demolidor), Gil Kane, John Romita, Don Heck (Homem de Ferro), etc. As vantagens desse método para o escritor é a de que ele tem de certa forma seu trabalho reduzido (não sei se é bem uma vantagem), e também pode alterar a história para melhor após ver os desenhos feitos. Se contar com um grande desenhista tirará a sorte grande. As desvantagens desse método são preocupantes. Se o desenhista não souber criar muito bem a história ou não houver uma comunicação frutífera entre os autores, os desenhos podem não ter nada a ver com a idéia que o escritor tinha em mente. Aí ele terá que se virar na hora de colocar os diálogos. Além disso, é um processo mais demorado, onde temos um ping-pong além do normal entre roteirista e desenhista. 2. Full Script (Script Completo) É o tipo de roteiro mais comum, e geralmente o mais parecido com a formatação do cinema. Aqui, as variações na formatação são praticamente infinitas, mas as páginas são claramente definidas, assim como todos os painéis e diálogos. A vantagem é que o roteirista tem um controle maior do que escreveu, e após a aprovação do editor, o trabalho fica exclusivamente nas mãos do desenhista. É lógico que o desenhista pode entrar em contato e fornecer algumas idéias, o que é bastante comum. No roteiro de cinema, não fica muito bem o escritor dar ordens diretas ao diretor em um roteiro. Porém, o roteiro de histórias em quadrinhos é muito mais informal e muitos são realmente uma conversa direta com o desenhista, estando o escritor bem mais a vontade para direcionar a obra do que nos filmes. O nível de detalhe de um Full Script varia muito. O escritor pode apenas dar uma idéia do que ele quer em um painel, dando mais liberdade ao desenhista (principalmente se for de confiança), assim como pode controlar até a composição dos painéis e desenhos de cada página. Exemplos de Full Script: Exemplo - INHUMANS #1 PAUL JENKINS - PÁGINA 8 Para dar o download de todo o script original em inglês clique aqui. Página Oito Painel 1 Certo, rapaz ... esta página é um flashback de eventos que ocorreram quando Raio Negro era um jovem de cara limpa de dezenove anos. É uma reprise de uma história mais antiga, então provavelmente logo que você pegar este roteiro, alguém pode já ter procurado a referência. **Nota: Joe, Nancy... esta é a recordação que vocês pediram. Já que não conseguimos encontrar a referência para esta parte, isso precisa chegar ao Bob por causa da continuidade, e anexado se necessário. Na medida que começamos, estamos no meio de algum conflito ou outro. Maximus está em cima de uma construção, com jeito de insano, gesticulando selvagemente na medida que uma nave Kree decola para o céu. O próprio Raio Negro está acorrentado, e não pode se libertar. Max (Caption): "Não foi minha culpa-eu não pedi para que você estivesse lá quando os Krees chegassem. Você e essa sua consciência intratável e imutável." Painel 2 Aproximamos de Raio Negro, que grita para a nave. Estamos olhando para ele enquanto ele manda um golpe sônico para o ar. Atrás, Max segura a sua cabeça em sinal de extrema dor. Max (Caption): "Você simplesmente não poderia me deixar fora de sua pequena festinha, poderia? Voicê tinha que dizer algo..." Painel 3 Wham! A nave Kree se despedaça no céu, pegando fogo na medida que começa a se desintegrar. O casco principal da nave já aparenta estar caindo de uma forma suspeita lembrando um foguete espacial. Eu lhe dou total permissão para você desenhar o efeito sonoro, principalmente se você colocar uma palavra rude nele. "Tha-WANK!" (?) *** O exemplo acima (traduzi apenas três dos cinco painéis da página) mostra como o roteiro de quadrinhos é bem informal. Há inclusive recados para outras pessoas responsáveis pela revista. Caption siginifica caixas de texto, não sendo balões de diálogos, e são muito comumente utilizadas, geralmente para descrições ou para a narração de uma história, como foi no caso anterior. Exemplo - ULTIMATE FANTASTIC FOUR #21 MARK MILLAR - PÁGINAS 2 e 3 Para dar o download de todo o script original em inglês clique aqui. Página Dois 1/ Ao virar a página o leitor se depara com uma página splash inteira do Coisa de costas para nós, com um punho para trás em nossa direção enquanto ele ajusta um fone de ouvido com o outro. Um Tiranossauro Rex corre contra nós atravessando uma vegetação pré- histórica. Estamos milhões de anos no passado. CAPTION : 150 Milhões de anos atrás O COISA : Reed. O COISA : Dois segundos. Página Três 1/ Uma tomada "cool" do Coisa socando o dinossauro na face. O COISA : HNNT. 2/ Uma tomada impactante com a cabeça do bicho se movendo para trás, com seu maxilar deslocado. SEM DIÁLOGO 3/ Se afaste um pouco e nos mostre o dinossauro caindo em um amontoado, com terra para todos os lados e O Coisa apenas parado lá com uma postura maneira como uma pequena figura. Este painel provavelmente fica melhor visto de cima. SEM DIÁLOGO *** Reparem em como as caixas de texto e o diálogo são colocados na página, não se esquecendo que cada um faz isso de uma maneira diferente. Quando o mesmo personagem fala duas vezes seguidas, significa que o roteirista quer dois balões de diálogo e não apenas um. É interessante notarmos também como o Millar indica o painel apenas com um número, sendo este roteiro de escrita bem ágil. Geralmente, os Full Scripts tem como base a seguinte estrutura: Ou seja, toda obra tem uma ou mais páginas. Cada página tem um ou mais painéis, onde cada painel obrigatoriamente tem que ter uma descrição, e, opcionalmente, Captions e/ou diálogos. 3. Full Script Detailed (Script Completo Detalhado) Criei esse tipo de classificação exclusivamente para abrigar os scripts de Alan Moore, que são detalhados ao extremo. Moore é talvez o mais talentoso escritor de histórias em quadrinhos em todos os tempos, tendo ajudado muito a elevar o prestígio desta arte. Na mesma proporção que Moore é fabuloso ele também é excêntrico, e alguns de seus roteiros para histórias em torno de 20 páginas chegam a ter mais de 100 folhas! O mais interessante, é que mesmo com toda a sua descrição detalhista, os desenhistas que trabalham com Moore sempre deram uma grande contribuição ao seu trabalho, inclusive com idéias próprias. Basta vermos o papel fundamental de Dave Gibbons na criação de todo o simbolismo de Watchmen, provavelmente a maior obra de hq já realizada. Exemplo de Full Script Detalhado: Exemplo - THE KILLING JOKE (A Piada Mortal) ALAN MOORE - PÁGINA 4 - Painel 1 Para dar o download das 10 primeiras páginas dessa obra revolucionária, que estabeleceu as bases da personalidade atual do Coringa, utilizada inclusive nos cinemas, clique aqui. PÁGINA 4. (PAINEL) 1. AGORA MAIS UMA PÁGINA COM NOVE PAINÉIS. NESSE PRIMEIRO ESTAMOS OLHANDO ATRAVÉS DA MESA PARA O CORINGA (SITUADO FORA DO PAINEL) NA MEDIDA QUE ELE FITA OS OLHOS NO BATMAN, QUE AGORA ESTÁ SENTADO NO LADO OPOSTO DA MESA, COM SUAS LUVAS NEGRAS COM BARBATANAS REPOUSADAS CALMAMENTE NA PARTE DE CIMA. ALÉM DISSO, NÓS SÓ PODEMOS VER APENAS UM RELANCE DO SEU PEITO, TALVEZ COM SUA CAPA PRETA PENDURADA DE FORMA A REVELAR APENAS UM POUCO DO AMARELO E PRETO DO SÍMBOLO POR TRÁS. TIRANDO ISSO, O RESTANTE DO BATMAN ESTÁ TOTALMENTE INVISÍVEL NAS SOMBRAS FEITAS PELA AURÉOLA DE LUZ DE UM ABAJUR MONTADO EM CIMA DA MESA DE CARTAS. TALVEZ NAS PROFUNDAS SOMBRAS QUE OBSCURAM A CABEÇA E OS OMBROS DO BATMAN POSSAMOS VER DOIS LAMPEJOS BRANCOS ONDE SEUS OLHOS ESTÃO SITUADOS, JÁ QUE A LUZ DA LÂMPADA DA PAREDE AO REFRATAR NO ESPELHO DE SUAS LENTES DE CONTATO FAZ SEUS OLHOS PARECEREM VAZIOS E BRANCOS TODO O TEMPO. NO PRIMEIRO PLANO TUDO QUE PODEMOS VEZ DO CORINGA SÃO SUAS MÃOS BRANCAS ENTRANDO NO PAINEL PELA FRENTE, PEGANDO OUTRA CARTA E COLOCANDO-A NA MESA DA MESMA FORMA QUE ANTES, AINDA PARECENDO TOTALMENTE ALHEIO A IMPONENTE PRESENÇA DE UMA GRANDE FIGURA NEGRA SENTADA À SUA FRENTE NA MESA DE CARTAS. TAMBÉM VISÍVEL NA MESA, E EU PROVAVELMENTE DEVERIA TER MENCIONADO ISSO NAS PÁGINAS DOIS E TRÊS, PELO QUE EU ME DESCULPO AGORA, SÃO DUAS CARTAS DE CORINGA DESCARTADAS QUE O PÁLIDO LUNÁTICO ESTÁ UTILIZANDO EM SEU JOGO, COLOCANDO UMA POR CIMA DA OUTRA. O BRANQUELO E MALICIOSO DESENHO DA CARTA PODE SER TALVEZ MODELADO À PARTIR DO DESIGN DA CARTA ORIGINAL QUE DEU A IDÉIA PARA JERRY ROBBINS FAZER O CORINGA, O QUE EU ACREDITO QUE POSSA SER ENCONTRADO NO LIVRO DE STERANKO SOBRE QUADRINHOS. A FACE É MALDOSA E PERVERTIDA E DEPRAVADA. O BATMAN: Olá. O BATMAN: Eu vim para conversar. *** Esse script é o exemplo da falta de formatação existente para as hqs. Moore escreve tudo com letras maiúsculas e nem se preocupa em dividir em parágrafos. Reparem a quantidade de linhas para descrever apenas um painel. Só recomendo escrever assim se você tiver a genialidade de Alan Moore, caso contrário faça um roteiro "clean", fácil de se ler, e sem tantos micro detalhes. 4. Layout Script Algumas vezes o roteiro de uma hq, tanto Full Script quanto Marvel Way, vem acompanhado de rascunhos feitos pelo escritor de como deve ser um painel ou uma página, principalmente quando o roteirista quer ter mesmo a certeza de que o desenho final estará bem próximo do que ele deseja. Porém, há uma variante mais incomum que é o próprio roteiro ser todo desenhado em layouts, inclusive com diálogos inclusos, simulando já uma revista pronta e portanto merecendo uma classificação especial. Esses roteiros desenhados geralmente são feitos por excelentes desenhistas que também gostam de escrever histórias, necessitando de um grande conhecimento em narrativa visual. No exemplo abaixo, Jeff Smith (criador de Bone), faz um roteiro desenhado para o grande Charles Vess se basear. Coloquei também a página pronta para podermos comparar. É realmente algo bem interessante. Exemplo de Layout Script: Exemplo - ROSE JEFF SMITH - PÁGINA 21 Agora a versão final desenhada e colorida por Charles Vess: *** Conclusão: É fundamental termos em mente que o básico para uma criação de roteiro para histórias em quadrinhos é o mesmo de uma obra cinematográfica ou literária. Não há mudança significativa na teoria sobre estrutura da história, criação de personagens, diálogos e outros tópicos relevantes. O principal conselho que podemos retirar desse caos de formatação nas hqs, é sempre procurarmos escrever de maneira clara, com bastantes espaços em branco para facilitar a leitura (Alan Moore não conta). Poucos scripts de quadrinhos se encontram disponíveis, até para a compra. Mas nesse caso, na minha opinião, o conhecimento teórico de escrita e a análise das obras já prontas se torna mais importante que a formatação a ser utilizada ou da própria análise de um script original. Exercício proposto: - Pegue qualquer revista em quadrinhos e faça o processo criativo inverso. À partir da revista já pronta, escreva o roteiro, copiando todos os diálogos mas descrevendo os painéis e páginas à sua maneira. O seu poder de sintetizar e observar as informações de uma hq será bastante estimulado, e essa é uma excelente maneira de analisar uma obra. Bons estudos!