Pontos de Vista na Literatura
Por Sandro Massarani
É muito complicado determinarmos qual é a principal razão do interesse
das pessoas por histórias. Existem inúmeras opiniões distintas, cada uma
com sua parcela de razão. Porém, não podemos negar que há o encanto
por entrarmos em um mundo que não é o nosso, em uma mente que
não é a nossa, vivermos a vida de uma outra pessoa, torcer por ela,
chorar com ela, extravazarmos nossas fantasias.
Um escritor precisa ficar atento a este fato, e no processo de construção
de seu texto ele precisa definir a seguinte questão:
Através da visão de qual ou quais personagens
contarei esta história?
A resposta a essa pergunta nos levará à definição do Ponto-de-Vista (POV)
da obra, ou seja, quem contará os acontecimentos e como eles serão
narrados.
Vamos agora analisar os principais POVs existentes na literatura.
1. Primeira Pessoa
A narração em primeira pessoa se baseia no "eu". O narrador se mescla
com o próprio personagem e obtemos uma história altamente pessoal.
Exemplos:
Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu,
depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao
sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Praça da
Constituição tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o
facto doeu-me, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se
afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita.
Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que,
algumas vezes, a minha vã devoção a exasperara; morta, podia
consagrarme à sua memória, sem esperança, mas também sem
humilhação. Lembrei-me de que a 30 de Abril era o seu aniversário;
visitar, nesse dia, a casa da Rua Garay para saudar seu pai e Carlos
Argentino Daneri, seu primo direito, era um acto cortês, irrepreensível,
talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha,
de novo estudaria as circunstâncias dos seus muitos retratos. Beatriz
Viterbo, de perfil, a cores; Beatriz, com máscara, no Carnaval de 1921; a
primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia do seu casamento com
Roberto Alessandri; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do
Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos
Argentino; Beatriz, com o pequinês oferecido por Villegas Haedo; Beatriz,
de frente e a três quartos, sorrindo, com a mão no queixo... Não seria
obrigado, como outras vezes, a justificar a minha presença com módicas
ofertas de livros - livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para
não comprovar, meses depois, que se mantinham intactos.
Jorge Luis Borges - O Aleph (1949)
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as
partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para
poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus,
em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais
confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e
adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil
Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos,
observou a esmo:
- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
Lima Barreto - O Homem que Sabia Javanês (1911)
O POV em primeira pessoa tem a vantagem de uma proximidade máxima
com o personagem que narra a obra, e acabamos compartilhando
totalmente todas suas sensações, emoções e opiniões. Os pensamentos
desse narrador/personagem são facilmente transmitidos, já que ele
"conversa" diretamente com o leitor. O problema de se utilizar o POV de
primeira pessoa é que geralmente ficamos preso somente a uma visão, e
geralmente não podemos narrar o que esse personagem não vê.
Nós nunca devemos "enganar" o leitor quando utilizamos a primeira
pessoa. Se o narrador sabe de algo, os leitores também devem saber, não
havendo espaços para surpresas de última hora. Por isso, não é
recomendado que o narrador de histórias de detetive e mistério seja o
personagem principal, senão o suspense e o mistério perderia muito de
sua força. As histórias de Sherlock Holmes precisam ser narradas pelo
Dr.Watson, que ao se surpreender com as façanhas de seu amigo acaba
também transferindo sua emoção ao leitor.
Um erro comum no POV em primeira pessoa é o autor escrever suas
próprias opiniões e as transferir totalmente para o personagem. O
escritor tem que ter cuidado. Mesmo estando em primeira pessoa, o
personagem narrador não é o autor, e sim uma pessoa distinta criada
para os propósitos da história, que deve ter sua própria individualidade
para ser crível. É lógico que se o autor estiver escrevendo um texto
autobiográfico esse problema não se aplica.
2. Terceira Pessoa
A narração em terceira pessoa se baseia no "ele", "ela" ou "isto", e a
maioria das obras comerciais são escritas nesse POV. Ao mesmo tempo
que podemos saber o que se passa dentro do personagem ("Ele pensou"),
também podemos analisá-lo por fora, pelos olhos do autor ("Ele fez").
Exemplos:
De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O que
era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos.
Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a
vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma
meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se
espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso
com uma jóia. Ela.Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria de
pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. De devaneio
agudo com um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto
até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir
fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de
"ninguém olhar para ela".
Quando de madrugada se levantava - passado o instante de vastidão
em que se desenrolava toda - vestia-se correndo, mentia para si mesmo
que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais
adivinhara quão poucos ela tomava. Sob a luz acesa da sala de jantar,
engolia o café que a empregada, se começando no escuro da cozinha,
requentara. Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia. Com a boca
fresca de jejum, os livros embaixo do braço, abria enfim a porta,
transpunha a mornidão insossa da casa, galgando-se para a gélida fruição
da manhã. Então já não se apressava mais.
Clarice Lispector - Preciosidade (1960)
Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não
atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos
na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na
política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da
posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados
no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo
prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo,
arregaçou as mangas e disse:- Já falaram, já comeram biscoitinhos de
araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!E sem mais aquela,
atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos
que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em
cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte.
José Cândido de Carvalho
Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon (1971)
A vantagem da terceira pessoa é que o autor tem maior flexibilidade para
contar a história, não precisando ficar preso a somente uma visão, como
na primeira pessoa. Porém, devemos ter certos cuidados. Qual é a
proximidade que teremos com cada personagem? Saberemos com
detalhes o que se passa dentro da cabeça de cada um? O escritor precisa
ter isso em mente na construção da obra.
Toda vez que pulamos de uma mente para a outra, o leitor acaba também
tendo que alterar sua visão, o que pode causar um certo desconforto e
até a perda da concentração. Além disso, saber o que se passa na cabeça
de todos os personagens pode tornar a obra muito fragmentada e
inconsistente.
Muitos autores se utilizam do que chamamos de terceira pessoa limitada,
ou seja, mantém durante a obra uma relação de proximidade com apenas
um personagem. Apesar da obra ser narrada em terceira pessoa, nós só
sabemos os sentimentos e as opiniões de um só caracter, o que torna o
texto mais coeso e próximo a uma primeira pessoa, uma narração quase
pessoal. Porém, o mais comum em obras comerciais é o autor ficar
"passeando" pelas mentes dos personagens e isso deve ser feito com
muita suavidade para não causar vertigem no leitor.
O autor deve conscientemente definir qual o tipo de aproximação a
narração terá com determinado personagem. O fragmento abaixo mostra
um certo distanciamento do narrador:
Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas
mãos, costurava o que parecia ser uma luva. Ele estava visivelmente
indeciso e não sabia se aquele era o momento certo de se declarar.
Vamos ver como esse fragmento se transforma quando o narrador
estabelece uma relação mais íntima com o personagem Artur, típico da
terceira pessoa limitada:
Artur se aproximou do pequeno banco onde Rosa, com suas pequenas
mãos, costurava o que parecia ser uma luva. E agora? O que fazer? O
nervosismo só aumentava, o suor escorria. Ela era tão linda, mas o medo
de uma rejeição se tornava cada vez maior.
O POV de terceira pessoa permite inúmeras possibilidades narrativas, e
deve ser utilizado quando temos vários personagens importantes que
precisam mostrar suas vozes e pensamentos, ou quando a narração em
primeira pessoa é vista como uma opção claustrofóbica para a história,
desejando o autor mais flexibilidade.
3. Omniscente
Ominiscente é quando o narrador é uma espécie de "Deus": sabe de tudo
e de todos, inclusive fazendo comentários diretos para o leitor. É uma
radicalização da terceira pessoa, sendo bastante artificial e invasivo, pois
penetra em um mundo que deveria ser privacidade do leitor. Muito
comum no século XIX, foi perdendo sua popularidade ao longo dos anos
mas ainda pode ser encontrado em algumas obras atuais.
A principal diferença entre terceira pessoa e omniscente, é que em
terceira pessoa o escritor permanece de certa forma invisível, deixando
espaço somente para os personagens. Já no POV omniscente, o escritor
participa ativamente da narrativa. Exemplo:
Que ele era um dos primeiros gamenhos de seu bairro e outros bairros
adjacentes, é coisa que não sofre nem sofreu nunca a menor contestação.
Podia ter competidores; teve-os; não lhe faltaram invejosos; mas a
verdade, como o sol, acabou dissipando as nuvens e mostrando a face
rutilante e divina, ou divinamente rutilante, como lhes parecer mais
correntio e penteado. O estilo há de ir à feição do conto, que é singelo, nu,
vulgar, não desses contos crespos e arrevesados com que autores de má
sorte tomam o tempo e moem a paciência à gente cristã. Pois não! Eu não
sei dizer coisas fabulosas e impossíveis, mas as que me passam pelos
olhos, as que os leitores podem ver e terão visto. Olho, ouço e escrevo.
Machado de Assis - Dívida Extinta (1878)
4. Epistolário
Epistolário é quando a narração se dá por meio de documentos escritos
ou gravados, como cartas, notícias de jornais, e-mails, entrevistas e
diários. É muito raro termos uma obra inteira sendo narrada através de
epistolários, sendo o mais comum termos apenas alguns fragmentos do
texto utilizando esse POV.
A obra mais famosa escrita totalmente em espistolários é provavelmente
Drácula de Bram Stoker:
Diário de Jonathan Harker (Taquigrafado)
3 de maio. Bistritz - Parti de Munique às 8,35 da noite e cheguei a Viena
na manhã seguinte, muito cedo; devia ter chegado às 6,46, mas o trem
estava atrasado uma hora. Tive ótima impressão de Budapeste, pelo que
pude ver do trem, e pelo pequeno passeio que dei pela cidade. A
impressão que tive foi a de estar saindo do Ocidente e entrando no
Oriente.
O tempo estava muito bom quando partimos e, ao anoitecer, chegamos
a Klausenburg, onde passei a noite no Hotel Royale. Ali jantei, ou melhor,
ceei, uma excelente galinha temperada com uma espécie de pimenta
vermelha. (Nota: arranjar receita para Mina.) Meu alemão, embora eu o
fale mal, me foi muito útil; para falar a verdade, não sei como me
arranjaria sem ele.
Antes de partir de Londres, como dispunha de algum tempo, fiz uma
visita ao Museu Britânico, onde consultei livros e mapas referentes à
Transilvânia. Descobri que a região por ele mencionada fica perto das
fronteiras de três Estados, Transilvânia, Moldávia e Bucovina, nos Montes
Cárpatos, um dos lugares mais selvagens e menos conhecidos da Europa.
Drácula - Bram Stoker (1897)
Considerações finais
Evite mudar constantemente os POVs de uma história. O mais comum é
combinarmos primeira ou terceira pessoa com epistolário. Não é muito
interessante combinarmos primeira com terceira pessoa, pois causa
confusão no leitor. Porém, a escrita, como toda arte, não precisa seguir
fórmulas preparadas, tendo espaço para experimentos, desde que estes
sejam feitos com atenção e por alguém de habilidade.
A escolha do narrador e do POV é de fundamental importância. Nem
sempre o personagem principal precisa ser o narrador. O escritor deve
buscar o ângulo de visão mais interessante para contar o seu texto e ter
sempre em consideração que o narrador deve presenciar as cenas mais
importantes da obra.
Bons estudos!
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