Cidadão Kane (1941)
Por Sandro Massarani
Nome: Cidadão Kane
Rating: 9 / 10
Nome Original: Citizen Kane
Ano: 1941
País: Estados Unidos
Cor: P/B
Duração: 119 min.
Dirigido por: Orson Welles
Fotografia: Gregg Toland
Escrito por: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles
Estrelado por: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Ray Collins,
Everett Sloane, Georges Coulouris, Agnes Moorehead
"Rosebud."
Enredo:
Filme que consolidou a maioria das técnicas da narrativa cinematográfica
utilizadas até hoje, conta a trajetória de ascensão e queda de grande magnata
da mídia e a jornada de um repórter para saber o significado de sua última
palavra: Rosebud.
Histórico:
Não duvidem. Daqui há mil anos, ainda haverá fascínio e argumentos polêmicos
sobre o nascimento de uma das mais impactantes obras artísticas da história. O
mais incrível é que a criação de Cidadão Kane se tornou lendária em sua própria
época, e como podemos explicá-la? Destino? Loucura do estúdio? Sorte de
principiante? Não me perguntem. O que farei aqui é apenas juntar os fatos sob
minha ótica sempre parcial.
Orson Welles era um jovem de apenas 24 anos em 1939, mas já carregava nas
costas alguns anos de intensa experiência artística, principalmente no teatro e
no rádio. Sua adaptação de Macbeth em 1936, somente com atores negros e
quando tinha 20 anos, é até hoje um marco do palco norte-americano. Em 30 de
outubro de 1938, Welles fez sua famosa narração no rádio da clássica obra de
H.G Wells Guerra dos Mundos. Exageros à parte, a narração foi tão convincente
que algumas pessoas realmente se assustaram achando que era um noticiário
sobre uma possível invasão alienígena, e Welles, já reconhecido como uma
espécie de prodígio, alcançou imediatamente fama nacional.
Todas essas atribulações envolvendo Welles não passaram despercebidas pelo
grande executivo George Schaefer, chefe da RKO, na época um dos cinco
maiores estúdios de Hollywood. Schaefer faria uma série de propostas para
Welles migrar dos palcos e das ondas sonoras para o cinema, sempre
recebendo uma recusa como resposta. A cada negativa de Welles, Schaefer
acrescentava algo para fazer o teimoso jovem mudar de idéia, até que o mais
famoso e inimaginável acordo da história do cinema acabou sendo
concretizado: Orson Welles, que nunca havia dirigido sequer um minuto de
filme, receberia algo que até os mais famosos diretores de hoje raramente
conseguem: poder absoluto.
Welles teria direito a escrever, dirigir e produzir dois filmes, sujeitos a aprovação
final da RKO. Poderia escolher seus atores e receberia entre 20 e 25% de toda a
renda de suas obras. Ainda mais importante, ele poderia assistir as cenas
filmadas em privacidade e poderia editá-las da maneira que quiser, ou seja, a
liberdade da construção. Imediatamente Welles passou a ser mal visto em
Hollywood. Como um garoto poderia ter direito a tanto, quando nunca havia
nem segurado em uma câmera profissional. Chegava a ser ofensivo para alguns.
À partir deste momento Welles começaria a se aprofundar cada vez mais nos
estudos cinematográficos, analisando detalhadamente inúmeras obras. Após
alguns projetos abortados, Welles e o escritor Herman J. Mankiewicz resolveram
criar uma história levemente baseada no magnata da mídia William Randolph
Hearst, com o título de American. Mankiewicz, prolífico produtor e escritor que
possuía sérios problemas com bebidas, escreveu um script com mais de 250
páginas que seria bastante alterado por Welles, inclusive seu nome: de American
para Cidadão Kane. Ambos disputariam até o fim os créditos do texto.
Uma das máximas do sucesso na administração é o chefe colocar pessoas com
conhecimentos superiores aos seus em todas as funções. E foi isso que ocorreu.
É extremamente errôneo considerarmos Cidadão Kane uma obra exclusiva de
Welles. O cinema é uma arte coletiva e Welles sabia disso. Além de Mankiewicz,
Welles trabalharia com o conceituado cinematógrafo Gregg Toland, que
simpatizava com a idéia de trabalhar com um amador que não temia arriscar,
uma combinação que se provaria magnânima. Muitos consideram Cidadão Kane
mais uma obra de Toland. Para interpretar, Welles chamou seus companheiros
de confiança do teatro (o Mercury Theatre Group), um risco que ele achou
necessário, pois se sentiria mais confortável no set de filmagens.
Welles surpreendeu a todos com seu sólido controle sobre o filme, inclusive
inovando ao permitir livre acesso do compositor Bernard Herrmann nos sets de
filmagem, algo bem incomum que acabou contribuindo para a excelente trilha
sonora. Como o próprio Welles, com a ajuda do editor Robert Wise (que depois
se tornaria um renomado diretor), teria total controle sobre as cenas finais, ele
gravou incontáveis minutos para realizar uma edição meticulosa.
Em primeiro de maio de 1941, Cidadão Kane é lançado para espanto dos
especialistas. Um filme que podemos considerar experimental, que compilou
nos seus 119 minutos uma série de técnicas, muitas já existentes, mas que
nunca antes haviam sido reunidas com tanta clareza e eficácia. Sua fotografia
profunda (deep focus), seu uso fabuloso da luz, suas técnicas de flashback e de
transição foram imediatamente transformadas no padrão hollywoodiano. Até as
histórias em quadrinhos vão sofrer profundo impacto, ainda que mais lento, da
narrativa de Cidadão Kane.
Nada disso passou despercebido por Hearst, que buscou boicotar de todas as
formas o filme, atacando-o constantemente em seus jornais. Apesar das críticas
positivas no seu lançamento, Cidadão Kane acabou causando prejuízo para a
RKO devido as ações de Hearst. Recebeu dez indicações para o Oscar, mas
inacreditavelmente, talvez no maior erro da história da academia, o filme só
receberia o prêmio de melhor roteiro.
Após Cidadão Kane, a vida artística de Welles foi de altos e baixos, porém nunca
atingindo o patamar estabelecido em 1941. Foi dispensado da RKO, que editou
43 minutos do seu segundo filme (The Magnificent Ambersons - Soberba) e se viu
realizando basicamente filmes noir e adaptações de Shakespeare para a tela
grande, em uma constante luta para obter financiamento. Até no Brasil veio,
para filmar um documentário que não foi lançado. Morreria em 1985.
Mas será Cidadão Kane o maior filme de todos os tempos? Obviamente isso é
uma questão pessoal. Como minha especialidade e meus estudos são
direcionados mais para a análise de roteiros e personagens, para mim Cidadão
Kane não é o melhor filme já realizado. Porém, do ponto de vista da qualidade
técnica, do primor da sua fotografia, da excelência de sua edição, de sua trilha
sonora e da eficácia na direção das tomadas na qual o filme foi construído, a
obra prima e primeira de Welles será sempre o padrão a ser superado.
Prós:
- Do ponto de vista técnico é sem dúvida o melhor filme de todos os tempos.
- A filmagem em Deep Focus de Gregg Toland, que mantém todos os elementos
da cena em foco, inclusive o fundo. O normal é o câmera direcionar o olhar do
espectador focando apenas alguns pontos da tela, o que é considerado por
alguns teóricos como uma manipulação. A filmagem em Deep Focus permitiu
tomadas mais longas e uma visão mais ampla sobre o que estava sendo
filmado, inclusive movendo os atores entre o background (fundo) e o foreground
(primeiro plano), o chamado eixo z .
- A Iluminação inovadora, principalmente com a utilização de sombras e luzes
inferiores (low key), criando uma atmosfera de suspense e mistério que seria
largamente utilizada pelos filmes noir.
- A composição (mise-en-scéne) meticulosa de cada cena chega a ser
assustadora. Nunca vi um filme posicionar tão bem os seus atores. Costumo
brincar dizendo que não importa o momento que você aperte o pause no
controle remoto, a imagem congelada sempre dará um quadro do mais alto
nível. Experimente.
- Filmagens dos tetos. Raramente os tetos aparecem em filmes porque os sets
de filmagem colocam luzes e microfones no alto. As inovações com a luz em
Cidadão Kane permitiram a filmagem dos tetos através de ângulos baixos e
inclinados para cima (low angle).
- A maquiagem é muito bem feita, retratando os personagens ao longo dos
anos.
- Diálogo natural, onde uma frase atropela a outra. Um dos principais problemas
que eu vejo nas telenovelas brasileiras é a extrema artificialidade dos diálogos,
onde as falas são feitas uma de cada vez. Isso também era ocorrência comum
nos filmes, o que incomodava Welles, que cobrou maior naturalidade nas
interpretações.
- A edição primorosa e a utilização de técnicas narrativas como flashbacks,
montagens de noticiários, e transições inovadoras de cena.
Contras:
- O único contra do filme na minha opinião é bastante grave. Não há
identificação entre a audiência e os personagens. Não nos importamos com o
destino de Kane, não nos emocionamos com ele, não estabelecemos uma
relação de amor ou de ódio. Os personagens secundários também são vazios,
sendo carregados mais pela qualidade da composição das imagens. Ainda assim
é um roteiro muito acima da média.
Devo Assistir ?
Para quem não conhece sua importância histórica o filme não terá tanto
impacto, ainda mais que suas técnicas inovadoras já foram largamente imitadas
durante as décadas. Mas é uma interessante história sobre o poder da mídia e
os sérios problemas da vida, que atingem a todos, independentemente da
classe social.
tópicos sobre narrativa, roteiros e mundos virtuais
Exemplo de tomada com Deep Focus
Utilização magistral da luz criando contrastes
Filmagem do teto, algo raro até hoje.
Reparem na excelência da maquiagem,
já que Welles, em primeiro plano, só tinha 25 anos.